domingo, 20 de setembro de 2015

O lobo entre lobos

Não lembro de nenhuma vez ter lido ou visto a história da Chapeuzinho Vermelho ser interpretada como um conto de fadas de viés feminista. Mas me parece que cabe uma interpretação assim. Chapeuzinho, a mãe e a avó são as três personagens da família, não há presença de um pai ou tio. O mundo, fora isso, são os lenhadores e o lobo. Figuras que habitam a floresta. Para que Chapeuzinho saia da casa da mãe e chegue até a casa da avó (ponto de partida e chegada), ela deve atravessar a floresta, cheia de perigos e onde vive um lobo mau, que pode ferir a menina. Os lenhadores são homens que também habitam esse espaço, cortam as arvores, descampam, abrem clareiras vazias em torno do mistério que envolve a floresta com seus caminhos escuros e ameaçadores. Mas ameaçadores para quem? Para a moça linda que é Chapeuzinho: "Era uma vez uma jovem aldeã, a mais bonita que fosse dado ver; a sua mãe era louca por ela e a avó mais ainda. Esta boa mulher mandou fazer-lhe um Capucho Vermelho, que lhe ficava tão bem que em todo o lado lhe chamavam Capuchinho Vermelho." (Perrault)
Chapeuzinho era uma aldeã, uma garota comum, que morava na aldeia, não tinha condições sociais que lhe permitissem proteger-se do bosque e de seus perigos. O agravante disso (que poderia ser algo bom para a menina) é que ela era a mocinha mais bonita que fosse dado ver. Em seguida, vem o excesso de cuidado da mãe e da avó em relação à garota, eram loucas por ela. Uma menina humilde e linda que tinha a convivência de duas mulheres, a mãe e a avó. O que a avó decide então fazer? Providencia um chapéu para que a netinha use. Um chapeuzinho vermelho. Algo que lhe cubra o rosto, talvez. Evitando que assim a menina possa ser vista e desejada, e sua vida corra risco. O corpo belo da mulher sendo coberto para impedir que desperte olhares desejosos em torno dela. A beleza escondida. A beleza roubada. E pior, a beleza amedrontada de existir livre de qualquer impedimento. Chapeuzinho precisa sair de casa, não para um passeio qualquer num dia qualquer. Ela tem uma missão de ir visitar a avó porque a pobre senhora está doente. "Vai ver como está a tua avó, porque me disseram que está doente; leva-lhe bolinhos com manteiga". E então a menina segue pelo bosque, sozinha. Com a encomenda para a avó e vestindo seu chapéu vermelho. Vermelho, um sinal de alerta para que ela pudesse ser vista se acontecesse alguma coisa? Vermelho, uma marca de perigo? Um indicativo feminino? Uma espécie de signo com que as mulheres pudessem se reconhecer e se defender entre si? Pois bem, Chapeuzinho segue pela floresta e encontra "o lobo" que: "... tinha muita vontade de comê-la, mas não se atrevia a tal por causa de alguns lenhadores que estavam na floresta." O lobo vivia na floresta entre os lenhadores, mas alguns deles eram homens que poderiam defender as mulheres de criaturas como ele. Se o lobo vivia entre os lenhadores e estes poderiam deixá-lo em paz desde que não causasse problemas e não importunasse a vida de algumas mulheres que ali passavam, podemos pensar que essa entidade "lobo" pode ser lida como uma natureza selvagem, indomável, violenta, bestial, implacável e todos os etecéteras que habitam a alma de alguns desses lenhadores. O lobo poderia ser qualquer um dos lenhadores, homens em situação livre, soltos no bosque, fazendo seu trabalho, executando suas tarefas entre outros homens, mas desvinculados da instituição familiar. Entre esses homens, um deles poderia deixar aflorar essa natureza selvagem e atacar uma vítima, predominantemente mulheres (percebam que esse lobo não devora outros lenhadores, e se não o faz poderíamos dizer que se trata então de alguém da sua própria espécie, alguém que ele reconhece como idêntico a si mesmo ou semelhante), já as mulheres são seres de outra natureza. E tornam-se portanto vulneráveis à brutalidade daquele ser. Chapeuzinho segue pela floresta, aproveitando o tempo para usufruir das belezas da floresta, talvez algo bastante raro para a menina que pouco saía de casa. O lugar da reclusão, o lugar fechado e sem novidades é a casa, as quatro paredes que impedem a menina de sair. Embora hoje a casa propicie alguns subterfúgios para se chegar ao bosque, porque afinal uma garota precisa ter a experiência do bosque para que, compreendo esse outro lugar, livre, fora dos muros, ela se permita fortalecer estruturas e suficiências de também transitar e ter acesso livre a esse lugar. Chapeuzinho fica encantada com o bosque. A ponto de, encontrando o lobo, conversar com ele tranquilamente, chegando a oferecer para esse lobo as coordenadas de como chegar a casa da avó. Estranho, sendo o lobo um ser diferente dos lenhadores, Chapeuzinho não desconfia em nenhum momento de que aquele lobo lhe pudesse causar problemas. Chapeuzinho chega à casa da avó, deita-se com ela na cama e fica espantada de ver as formas da avó tão diferentes. E então começa a perguntar, por que braços tão grandes, pernas tão grandes, orelhas tão enormes, olhos assim tão grandes, e dentes tão grandes e afiados: "É pra te comer. / E ao dizer essas palavras, o lobo malvado atirou-se sobre Chapeuzinho Vermelho e comeu-a". O pior de tudo é a moral da história: 

MORALIDADE Vê-se aqui que crianças jovens, sobretudo moças belas, bem feitas e gentis, fazem muito mal em escutar todo o tipo de gente; e que não é coisa estranha que o lobo tantas delas coma. Digo o lobo, porque nem todos os lobos são do mesmo tipo. Há-os de um humor gracioso, subtis, sem fel e sem cólera, que — familiares, complacentes e doces — seguem as jovens até às suas casas, até mesmo aos seus quartos; mas ai! Quem não sabe que estes lobos delicados e doces são de todos os lobos os mais perigosos. (Perrault)

Há maior indício de violência contra a vítima do que esse, dito por um homem do XIX e perpetuado até hoje, que culpabiliza as crianças, jovens, sobretudo moças belas, bem feitas e gentis, de escutar e conviver com esses tipos de lobos? E como distinguir, afinal, o lobo entre os lobos? Se alguns são familiares, doces, complacentes (talvez até uma exceção, pois a natureza do lobo tende à violência e esta precisa ser domesticada), como diferenciar se esse comportamento não seja apenas um subterfúgio para, na hora conveniente, devorar a menina, destroçá-lá, destruir sua inocência, sua existência, sua liberdade? Muito cuidado ao apresentar essa história aos pequenos (crianças), afinal eles,assim como as mulheres, são uma vítima em potencial dos lobos que habitam a alma humana. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário