domingo, 20 de setembro de 2015

O lobo entre lobos

Não lembro de nenhuma vez ter lido ou visto a história da Chapeuzinho Vermelho ser interpretada como um conto de fadas de viés feminista. Mas me parece que cabe uma interpretação assim. Chapeuzinho, a mãe e a avó são as três personagens da família, não há presença de um pai ou tio. O mundo, fora isso, são os lenhadores e o lobo. Figuras que habitam a floresta. Para que Chapeuzinho saia da casa da mãe e chegue até a casa da avó (ponto de partida e chegada), ela deve atravessar a floresta, cheia de perigos e onde vive um lobo mau, que pode ferir a menina. Os lenhadores são homens que também habitam esse espaço, cortam as arvores, descampam, abrem clareiras vazias em torno do mistério que envolve a floresta com seus caminhos escuros e ameaçadores. Mas ameaçadores para quem? Para a moça linda que é Chapeuzinho: "Era uma vez uma jovem aldeã, a mais bonita que fosse dado ver; a sua mãe era louca por ela e a avó mais ainda. Esta boa mulher mandou fazer-lhe um Capucho Vermelho, que lhe ficava tão bem que em todo o lado lhe chamavam Capuchinho Vermelho." (Perrault)
Chapeuzinho era uma aldeã, uma garota comum, que morava na aldeia, não tinha condições sociais que lhe permitissem proteger-se do bosque e de seus perigos. O agravante disso (que poderia ser algo bom para a menina) é que ela era a mocinha mais bonita que fosse dado ver. Em seguida, vem o excesso de cuidado da mãe e da avó em relação à garota, eram loucas por ela. Uma menina humilde e linda que tinha a convivência de duas mulheres, a mãe e a avó. O que a avó decide então fazer? Providencia um chapéu para que a netinha use. Um chapeuzinho vermelho. Algo que lhe cubra o rosto, talvez. Evitando que assim a menina possa ser vista e desejada, e sua vida corra risco. O corpo belo da mulher sendo coberto para impedir que desperte olhares desejosos em torno dela. A beleza escondida. A beleza roubada. E pior, a beleza amedrontada de existir livre de qualquer impedimento. Chapeuzinho precisa sair de casa, não para um passeio qualquer num dia qualquer. Ela tem uma missão de ir visitar a avó porque a pobre senhora está doente. "Vai ver como está a tua avó, porque me disseram que está doente; leva-lhe bolinhos com manteiga". E então a menina segue pelo bosque, sozinha. Com a encomenda para a avó e vestindo seu chapéu vermelho. Vermelho, um sinal de alerta para que ela pudesse ser vista se acontecesse alguma coisa? Vermelho, uma marca de perigo? Um indicativo feminino? Uma espécie de signo com que as mulheres pudessem se reconhecer e se defender entre si? Pois bem, Chapeuzinho segue pela floresta e encontra "o lobo" que: "... tinha muita vontade de comê-la, mas não se atrevia a tal por causa de alguns lenhadores que estavam na floresta." O lobo vivia na floresta entre os lenhadores, mas alguns deles eram homens que poderiam defender as mulheres de criaturas como ele. Se o lobo vivia entre os lenhadores e estes poderiam deixá-lo em paz desde que não causasse problemas e não importunasse a vida de algumas mulheres que ali passavam, podemos pensar que essa entidade "lobo" pode ser lida como uma natureza selvagem, indomável, violenta, bestial, implacável e todos os etecéteras que habitam a alma de alguns desses lenhadores. O lobo poderia ser qualquer um dos lenhadores, homens em situação livre, soltos no bosque, fazendo seu trabalho, executando suas tarefas entre outros homens, mas desvinculados da instituição familiar. Entre esses homens, um deles poderia deixar aflorar essa natureza selvagem e atacar uma vítima, predominantemente mulheres (percebam que esse lobo não devora outros lenhadores, e se não o faz poderíamos dizer que se trata então de alguém da sua própria espécie, alguém que ele reconhece como idêntico a si mesmo ou semelhante), já as mulheres são seres de outra natureza. E tornam-se portanto vulneráveis à brutalidade daquele ser. Chapeuzinho segue pela floresta, aproveitando o tempo para usufruir das belezas da floresta, talvez algo bastante raro para a menina que pouco saía de casa. O lugar da reclusão, o lugar fechado e sem novidades é a casa, as quatro paredes que impedem a menina de sair. Embora hoje a casa propicie alguns subterfúgios para se chegar ao bosque, porque afinal uma garota precisa ter a experiência do bosque para que, compreendo esse outro lugar, livre, fora dos muros, ela se permita fortalecer estruturas e suficiências de também transitar e ter acesso livre a esse lugar. Chapeuzinho fica encantada com o bosque. A ponto de, encontrando o lobo, conversar com ele tranquilamente, chegando a oferecer para esse lobo as coordenadas de como chegar a casa da avó. Estranho, sendo o lobo um ser diferente dos lenhadores, Chapeuzinho não desconfia em nenhum momento de que aquele lobo lhe pudesse causar problemas. Chapeuzinho chega à casa da avó, deita-se com ela na cama e fica espantada de ver as formas da avó tão diferentes. E então começa a perguntar, por que braços tão grandes, pernas tão grandes, orelhas tão enormes, olhos assim tão grandes, e dentes tão grandes e afiados: "É pra te comer. / E ao dizer essas palavras, o lobo malvado atirou-se sobre Chapeuzinho Vermelho e comeu-a". O pior de tudo é a moral da história: 

MORALIDADE Vê-se aqui que crianças jovens, sobretudo moças belas, bem feitas e gentis, fazem muito mal em escutar todo o tipo de gente; e que não é coisa estranha que o lobo tantas delas coma. Digo o lobo, porque nem todos os lobos são do mesmo tipo. Há-os de um humor gracioso, subtis, sem fel e sem cólera, que — familiares, complacentes e doces — seguem as jovens até às suas casas, até mesmo aos seus quartos; mas ai! Quem não sabe que estes lobos delicados e doces são de todos os lobos os mais perigosos. (Perrault)

Há maior indício de violência contra a vítima do que esse, dito por um homem do XIX e perpetuado até hoje, que culpabiliza as crianças, jovens, sobretudo moças belas, bem feitas e gentis, de escutar e conviver com esses tipos de lobos? E como distinguir, afinal, o lobo entre os lobos? Se alguns são familiares, doces, complacentes (talvez até uma exceção, pois a natureza do lobo tende à violência e esta precisa ser domesticada), como diferenciar se esse comportamento não seja apenas um subterfúgio para, na hora conveniente, devorar a menina, destroçá-lá, destruir sua inocência, sua existência, sua liberdade? Muito cuidado ao apresentar essa história aos pequenos (crianças), afinal eles,assim como as mulheres, são uma vítima em potencial dos lobos que habitam a alma humana. 

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Iscas


Desserts


O vídeo "Desserts" mostra uma visão dessa "troca de lugar". O que aconteceria se o que fazemos constantemente fosse feito a nós? De alguma maneira toda a postura do homem retorna a ele mesmo. Não há como esquivar-se de aceitar as consequências. Isso em escala mundial há muito tempo já se faz evidente. 



segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Um boi vê os homens

Tão delicados (mais que um arbusto) e correm e correm de um para o outro lado, sempre esquecidos de alguma coisa. Certamente falta-lhes não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres e graves, por vezes.
Ah, espantosamente graves, até sinistros.
Coitados, dir-se-ia que não escutam nem o canto do ar nem os segredos do feno,
como também parecem não enxergar o que é visível
e comum a cada um de nós, no espaço.
E ficam tristes e no rasto da tristeza chegam à crueldade.
Toda a expressão deles mora nos olhos -
e perde-se a um simples baixar de cílios, a uma sombra.
Nada nos pêlos, nos extremos de inconcebível fragilidade, e como neles há pouca montanha, e que secura e que reentrâncias e que impossibilidade de se organizarem em formas calmas, permanentes e necessárias.
Têm, talvez, certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazem
perdoar a agitação incômoda e o translúcido vazio interior que os torna tão pobres e carecidos de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme
(que sabemos nós), sons que se despedaçam e tombam no campo
como pedras aflitas e queimam a erva e a água,
e difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade.

ANDRADE, Carlos Drummond de.Um boi vê os homens. In; Claro Enigma. São Paulo. Companhia das Letras, 2012.


Drummond, em 1951, publica no livro Claro Enigma, o poema "Um boi vê os homens". Não será obviamente a mesma visão que um boi, hoje, veria os homens. Os bois, hoje, não teriam o mesmo tempo de reflexão para enxergarem os homens com tamanha calma e concentração. Mas vamos ver como era esse olhar do boi que vê os homens em 1951. E também, óbvio, o poeta personifica o sentimento que um boi teria em relação aos homens. Vejamos:

Tão delicados (mais que um arbusto) e correm e correm de um para o outro lado, sempre esquecidos de alguma coisa. Certamente falta-lhes não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres e graves, por vezes.

Ah, espantosamente graves, até sinistros.


A delicadeza que o boi vê nos homens não está relacionada a uma característica comportamental e sim física. São os homens delicados, frágeis, desprovidos de estrutura física que lhe atribua certa força natural. Sua pele, sua carapaça, são delicadas como arbustos, rasteiros, que crescem e se amontoam. Nessa delicadeza, exposta à flor da pele, resta uma inquietação, alguma coisa que lhes impede a calma, a concentração a tranquilidade. Os homens correm, de um lado para outro, como se esquecidos de algo que lhe falta. Ausência nunca preenchida condicionando esse incensante correr. Se tanto correm, pensa o boi, decerto falta-lhes algo que, se estivesse com ele, não geraria essa inquietação. Por outro lado, esse estigma confere-lhe alguma nobreza - uma espécie de piedade por este ser frágil e inquieto é despertada no olhar do boi. Pobre homem, tão grave o seu semblante. Esse olhar grave por vezes se escurece, torna-se sinistro, como um espectro que o acompanha, talvez a impossibilidade de encontrar a essência e aquietar-se, enfim. 

Coitados, dir-se-ia que não escutam nem o canto do ar nem os segredos do feno,
como também parecem não enxergar o que é visível
e comum a cada um de nós, no espaço.

Ao observar o homem, o boi sente por ele uma piedade. Pobre homem, não sabe o quanto seria simples se ele somente parasse para escutar o canto do ar, os segredos do feno. As coisas que estão disponíveis a ele. As coisas simples e naturais, o vento, o alimento. Isso seria suficiente para que a realidade fosse possível, visível, palpável e entre os seres houvesse uma harmonia, uma vez que os seres vivos, para viver, basta-lhes somente o essencial. O que ultrapassar isso, deturpa a visibilidade do mundo. Impede que a vista enxergue o que é visível, e a partir de então, os delírios, as visões, as inquietações que empurram o homem a incansável, inquieta e equivocada busca. O que está no espaço deixa de fazer sentido e o homem se perde. 


E ficam tristes e no rasto da tristeza chegam à crueldade.

Cansa toda essa busca. Cansa toda a correria. Não estando o homem satisfeito com o seu existir, sente-se triste. A tristeza contamina sua alma. Mais uma vez, talvez tentando compreender de onde nasce a tristeza, e sem enxergar a realidade, podem se tornar cruéis. A raiz da crueldade, para o boi que vê os homens, é somente um sintoma da tristeza gerada no homem a partir da ignorância de sua condição, sua situação, por não compreender, por não aquietar-se vem o comportamento violento. O rastro da tristeza, a extensão desse sentimento avassalador para esse ser frágil que é o homem, resulta em sua capacidade de agir violentamente. O mito de Caim, quando este se sente enciumado por Deus não se afeiçoar de suas oferendas, sente-se triste, não enxerga o visível, pensa ser Abel o motivo de sua tristeza. Tenta eliminar Abel de seu caminho. Atinge-o violentamente. Mata-o. E o sangue de Abel clama por justiça. Então, Caim, este homem que talvez esteja próximo do homem visto pelo boi no poema de Drummond, fica marcado. Um estigma o acompanha.  


Toda a expressão deles mora nos olhos -
e perde-se a um simples baixar de cílios, a uma sombra.


Nos olhos dos homens está a sua verdade. A expressão da verdade do homem é expressa pela luz emitida nesse olhar. Se o olhar for luminoso, todo o corpo irradia luz, se o olhar for feito de trevas, o corpo se contaminará dessa escuridão. A um simples baixar dos olhos, o que era luminoso pode se converter em sombra. Por que não há essa constância de luz? O baixar os olhos pode significar tristeza. Ausência de sentido na existência e, então, o rosto se volta para o chão. Baixam-se os cílios com a tristeza, a luz cede lugar à sombra e a partir de então as consequências dessa tristeza podem vir à tona, em forma de crueldade. Crueldade contra ele, crueldade praticada por ele.

Nada nos pêlos, nos extremos de inconcebível fragilidade, e como neles há pouca montanha, e que secura e que reentrâncias e que impossibilidade de se organizarem em formas calmas, permanentes e necessárias.



O homem, diluído na multidão, entre a manada, a massa, por mais que tenha uma tendência a seguir esse ritmo, não se harmoniza. A massa não apresenta uma expressividade calma, permanente e necessária. Aqui, o poeta talvez possa estava falando das diversas tentativas em conformar-se em modelos criados pelo próprio homem, esses modelos se esgotam, não permanecem - e talvez nem mesmo teriam sido necessários. Percebemos que a publicação do poema se dá no pós-guerra. O esfacelamento dos ideais humanos, a perplexidade, a ausência de perspectivas viáveis, a ausência de esperança. Temos então uma constatação de que a marcha é estéril. 



Têm, talvez, certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazem
perdoar a agitação incômoda e o translúcido vazio interior que os torna tão pobres e carecidos de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme
(que sabemos nós), sons que se despedaçam e tombam no campo
como pedras aflitas e queimam a erva e a água,
e difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade.





A melancolia que domina o espírito humano é que poderia impulsionar a criação de uma obra, algo que seja gracioso, que possa redimir o homem dessa agitação que o persegue, o vazio interior e a necessidade de preencher esse vazio de forma incessante. Os sons absurdos, agônicos transbordam, vão parar no espaço aberto, na paisagem natural do campo, "como pedras aflitas" gerando devastação - o desejo, amor, ciúme que habitam a mente resultam em tragicidade, esfacelando até aqueles seres que não provocaram nenhum mal ao homem. A destruição da paisagem (a erva e água) que poderiam apaziguar o homem desconstrói, desequilibra o espaço harmonioso da natureza. E afeta todos os seres. Nisso, o boi constata, depois de observar os homens e seu comportamento, torna-se "difícil, despois disso, ruminarmos nossa verdade." 


Qual então seria a resposta do homem a essa constatação? Existiria essa resposta? 


Vale a pena ver o que a escritora e pesquisadora Maria Esther Maciel diz a respeito do poema.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Tempo de ouvir

"Vou aprender a ler para ensinar meus camaradas"
Mário de Andrade

Todo leitor carrega consigo uma responsabilidade social. O indivíduo que lê livros de valor literário, dentro da comunidade, grupo ao qual pertence, se favorece ou sofre o estigma de destacar-se dos demais pela capacidade e exercício de conseguir conviver com a solidão de ler. A solidão de estar disposto às palavras do outro e, neste contato, refletir e experimentar as coisas do mundo, conceitos, ideias, sem necessariamente ceder, pôr em risco, entregar o corpo a determinadas realidades. 
Vejamos que impressões ficamos dos dois textos lidos no último encontro, os capítulos finais da obra Quincas Borba (1892), de Machado de Assis; e o capítulo Baleia, da obra Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos. Não vamos aqui nos deter em questões contextuais a respeito do movimento estético pertencente a cada um desses autores, isso já foi colocado em nosso encontro. O que interessa é de que modo essa leitura nos afetou. Afinal, ler é deixar afetar-se; se não há entrega, não há o encontro que gera no leitor a apreensão do efeito estético. Exagero? Sim, precisamos exagerar para que a arte nos absorva e nos absolva; retirando-nos da anestesia cotidiana e oferecendo-nos um olhar novo sobre a camada superficial da realidade. Estamos, então, em Barbacena, século XIX, acompanhamos um homem e seu cachorro num périplo que o leva ao fim de sua vida (ambas as vidas, do cachorro e do homem se acabam ao fim do romance machadiano). Ao cair da tarde, faz frio e chove. O homem aos poucos vai colhendo reminiscências da vida que viveu ali (ler todo o romance ajuda); a sensação física de estar exposto à chuva e faminto é apresentada pelo narrador de maneira  precisa - claro, é Machado de Assis, não contestamos o caráter artístico dessa narrativa, pois ele já se mostrou eficiente. Em outro momento, passamos para outra paisagem. Já não chove (quisera chovesse), nem faz frio. O sertão de G. Ramos em Vidas secas impregna-se nas alma das personagens. De todas, sem medida para mais ou para menos entre homens e animais. Trata-se de uma hora fatal. A maior de todas as horas, todos sabem; todos sofrem. Mesmo sem que seja necessário um longo discursos sobre esta condição. Fabiano, um dos protagonistas que integram a família (sim, ler todo o romance ajuda) chega à conclusão, intui, pressente, conclui que é preciso matar a cachorra Baleia. O desenrolar desse ato se projeta em nossos olhos de leitor. Estamos com o narrador; num primeiro momento, este colado à personagem de Fabiano - para logo depois abandonar todos e concentrar sua percepção em Baleia. Algumas palavras podem nos ferir os ouvidos, alguns leitores não familiarizados com a fala que emerge do texto, faca só lâmina, pela brutalidade que o meio lança sobre os homens e bichos que ali vivem - o Sertão, podem querer abandonar o romance e não voltar jamais a este lugar que o narrador apresenta. É preciso olhar, é preciso ouvir, afiar os sentidos e perceber que o drama - mesmo que atinja o bicho - é humano, e assim, diz respeito a todos nós. Ouvimos a voz desses narradores que, ao nos noticiar as últimas horas dessas personagens nos dá um testemunho vivo; melhor, verossímil, pois mesmo tratando-se de obra ficcional, representa a vida em sua casca quebradiça e frágil. 
Se o escritor, ao criar essas personagens, valeu-se de determinadas regras, conceitos, paradigmas próprios da estética literária na qual ele está inserido (o Realismo, no caso do Machado; o modernismo de 30, no caso de Graciliano Ramos), isso pouco importa para que o leitor vivencie em sua leitura o efeito estético. Desde que ele já esteja familiarizado à dicção machadiana ou ao falar árido de Graciliano, o esforço físico de ler - correr os olhos letra a letra, palavra a palavra, parágrafos e capítulos - já não se coloca como um obstáculo. Mas digamos que você seja um leitor que ainda não está "treinado" a ouvir/ler a narrativa desses autores. O salto (apreensão do efeito estético) será mais difícil (esse primeiro entrave é lento e demanda um treino, que somente com algum tempo de leitura de obras desses autores, ou de autores que se afinem com a estética realista, é que será menos sofrível, dolorido, difícil de vencer). A "caminhada" física do ato de ler poderia, claro, ser menos trágica se estivéssemos lidando com um leitor treinado desde cedo a reconhecer os tipos de percurso que ele irá enfrentar e, diante do desafio, se sentisse confiante, disposto e satisfeito com esse enfrentamento. Uma outra possibilidade é de tratar-se de alguém já adulto que, tendo interrompido por um tempo o exercício da leitura, voltasse a pegar em livro. É o mesmo que um exercício físico, sim. Alguém que, em algum momento de sua vida já tenha praticado esporte, quando volta a fazê-lo, o corpo acorda aquela experiência antiga e vai respondendo com mais vigor à medida que o exercício se torna mais exigente. Então, vencer esse esforço físico do ler é que representa um primeiro passo no que chamamos antes de "caminhada". 
Se antes dissemos que leitura é entrega, essa entrega deve ser dosada pelo prazer da caminhada. Vamos começar com um treino leve, até que o corpo (os olhos, a atenção, a escuta imaginativa) se familiarize com o percurso. Ler um capítulo, parar, refletir, observar o modo como esse autor constrói a estrutura narrativa pela qual passeamos - são bons artifícios de que dispomos para ultrapassar as dificuldades do ato de ler. E em vez de já tentar ler outros livros do autor, poderíamos também experimentar reler determinado trecho, para constatar que a coisa vai ficando mais "reconhecível". Aos poucos, ao bater os olhos na página, você já está identificando a voz (dicção) narrativa de determinado autor. Afinar o ouvido, usufruir tranquilamente da melodia, do ritmo, do andamento que se constrói à medida que lemos um texto é o mais importante para que, de repente, sem nos darmos conta, possamos ler sem perceber que estamos lendo: eis o salto. Simplesmente sentindo a narrativa e experimentando, pela grande tela que se abre em nossa imaginação, a mesma sensibilidade vivenciada pelas personagens. Estamos diante do outro no momento da leitura; até que distraidamente, somos o outro. Em sendo o outro nessa experiência de ler, sentimo-nos capazes de compreender sua dor, pois mais que ela se diferencie da realidade (social, cultural, econômica) a qual pertencemos. 
















quarta-feira, 22 de abril de 2015

A medida de cada leitor

Mediação: algumas considerações


Saber ler é o mesmo que ser um leitor? Todos que estamos frequentando o laboratório de leitura sabemos ler, claro. Somos/fomos alfabetizados, mas tornar-se um leitor, sem ter que pensar nisso, é algo que vem com o tempo – com as leituras, óbvio. Aliás, o que vou falar aqui parecerá óbvio, mas tem a ver com determinadas questões que surgiram das nossas conversas. Pois bem, o que diferencia tanto a arte literária das demais? Para ouvirmos uma música, por exemplo, basta-nos ligar o rádio e continuar o que estamos fazendo que a música nos chega e interagimos com ela sem muito esforço. Ouvimos a mesma música várias vezes e isso não nos incomoda, pelo contrário, quando toca no rádio aquela música de que gostamos, a nossa resposta é imediata. Com o livro é diferente. Nós lemos muitos livros, mas relemos poucos deles. Especialmente as narrativas. Reler um romance é algo mais incomum do que, por exemplo, reler um poema. Podemos pensar que os poemas têm mais a ver com a música. Talvez devêssemos transferir para a prática de ler o nosso modo de usufruir essas outras artes – com leveza, sem obrigação. Sem ver nisso algo que nos afaste da vida, mas que esteja incluído naturalmente em nossas vidas. 

O livro
“Uma grande biblioteca nem sempre pressupõe um grande leitor.”
O livro existe no mundo, está nas livrarias, nas bibliotecas públicas e particulares. Vivemos, no Brasil, uma realidade um tanto nova em relação ao livro: ele está à disposição da maioria de nós com mais facilidade do que esteve para os nossos pais. Estou falando do livro como objeto material. A coisa livro está por aí. Mas mesmo assim ainda guarda em si algo que nos distancia dele. Portar um livro em público conota um certo valor simbólico à pessoa; uma espécie de responsabilidade. Você deve quase que prestar satisfação para o mundo a respeito daquele livro que está lendo, meio que explicar o que você está fazendo com aquele determinado objeto, o que ele significa para você. Levar um livro para casa pela primeira vez também significa algo, uma espécie de seriedade, digamos assim. Talvez devêssemos fazer esses estigmas caírem por terra, acabarem de uma vez. Naturalizar a presença de livros em nossas vidas, assim como temos em casa televisão, rádio; assim como usamos celulares para nos comunicar, devêssemos também destituir o livro dessa importância que, em vez de ajudar a aproximar leitores, acaba por afastá-los. Ninguém quer se comprometer tanto com uma coisa que exige de nós tanta explicação. Um livro pode afastar os amigos de nós – porque talvez eles pensem que estamos entrando por um caminho sem volta quando começamos com essa coisa de ler. Gastar dinheiro com livro, pode ser algo assustador para algumas pessoas.
Então, em primeiro lugar, temos que exercitar de uma maneira natural essa aproximação com o livro. Uma criança que cresce com livros a sua volta não sente o impacto dessa presença pois já naturalizou o livro entre os objetos de sua convivência, os brinquedos, o videogame, a bicicleta, convivem em sua vida junto com os livros. Isso significa que o seu tempo de ler está garantido entre as atividades que lhe dão prazer, que excitam sua imaginação.
Em nossa prática de mediadores de leitura, a primeira questão que surge é: Qual o lugar que o livro ocupa em minha vida? Essa presença do livro é incômoda para mim? Meu relacionamento com o objeto livro se constrói de uma maneira tranquila ou obsessiva? Preciso lembrar que há pessoas que têm com o livro uma relação desmesurada, adquire vários volumes que permanecem fechados em suas bibliotecas sem que ninguém os abra – simplesmente como um objeto inerte que não produz nenhum movimento naquela vida ou em outras. A biblioteca para ser mostrada aos que visitam a casa – como se simplesmente ter o livro imprima naquele sujeito uma condição de superioridade diante do outro que não possui tantos livros assim. Uma disputa de conhecimento. Como mediadores, para o bem dos leitores que pretendemos formar, temos que parar de nos deslumbrar com alguns clichês do universo dos livros que remetem para esse lugar do “Eu sou mais leitor que você”. A nossa relação com os livros pretende democratizar, socializar, multiplicar leituras; então, lermos muito, significa que temos mais arsenal para encontrar, entre nossas leituras, aquele determinado livro que permita iniciar diferentes leitores nesse universo da leitura. Se ficarmos na competição, a relação será um pouco egoísta em vez de solidária. Um comportamento egoísta institucionaliza mais ainda o livro como algo que só pode ser usufruindo por alguns “escolhidos”. Temos também que derrubar esses mitos. Possuir uma grande biblioteca nem sempre significa ser um grande leitor.  
O livro não existe para ficar parado. O livro existe para o leitor. Mediar leitura é permitir ao livro que ele encontre o leitor e permitir ao leitor que ele encontre o livro. Aquele específico livro precisa encontrar aquele específico leitor. Como duas presenças que não se conhecem, nunca estiveram juntas, mas que precisam se conhecer, se encontrar, pôr em movimento suas substâncias internas. Permitir que elas entrem em confluência e se transformem. Assim como Heráclito diz que um homem não passa duas vezes pelo mesmo rio, um livro nunca é o mesmo quando em presença de um leitor – mesmo que seja o mesmo leitor (em momentos distintos da vida, a releitura de um livro vai proporcionar sensações e reflexões diferentes). Então vamos ficar com essa ideia como mediadores – alguns de vocês obviamente já se consideram leitores, já têm suas bibliotecas particulares, não pensam mais em trazer o livro para vida de vocês pois isso já é um fato. Outros ainda não naturalizaram o livro em suas vidas. A presença pode ser que ainda seja um pouco incômoda. O que é preciso pensar, nesse primeiro momento, é como que o livro deixa de se tornar um mero objeto e se torna algo simbólico cuja presença em sua vida tem uma relevância, um lugar.
Ainda que seja um único livro (ou alguns exemplares), vamos pensar como que ele veio parar em nossas vidas, como que foi que se deu essa apresentação. Não deve ter sido fácil. Provavelmente você deve ter tido um mediador, alguém que pôs esse livro em suas mãos com uma certa afetividade, um gesto que trazia em si sentimentos que lhe proporcionavam boas sensações; permitindo que aquele objeto simples, rudimentar, frágil, acabasse ganhando um significado maior. Dar um livro para alguém é uma grande responsabilidade. Se ao comprarmos calçados ou roupas precisamos saber o número/medida que a pessoa que vai usá-los calça/veste; entregar um livro para alguém também exige o conhecimento de uma medida. Antes, o mediador deve conhecer bem a pessoa para que pense qual livro lhe cai bem. Para cada leitor, uma medida. 


quarta-feira, 8 de abril de 2015

GALOS E GALINHAS




Ilustração da obra Tacuinum Sanitatis

O Laboratório de Leitura da Fundação Cultural de Curitiba Diz aí, bicho: os animais nas narrativas de ficção teve início ontem. Entre os textos lidos, a fábula Gallus Areorum Ovorum, de Augusto Monterroso. O livro é de 1969 e foi publicado recentemente pela editora Cosac & Naify com tradução do Millôr Fernandes. Maravilha, hein?! Também lemos mais dois contos, estes da Clarice Lispector: Uma galinha, publicado no livro Laços de família, de 1960; e O ovo e a galinha, lançado inicialmente no livro Legião Estrangeira, de 1964, e depois volta a ser publicado em Felicidade Clandestina, de 1971. 






Ficou para  próximo encontro: A galinha degolada, de Horácio Quiroga . Aqui vocês podem acessar o texto origial: La gallina degollada, de 1917. 

Um ilustrador que faz tirinhas com o personagem de um galo é o Fernando Gonzalez. As tirinhas são ótimas e conseguem ilustrar bem essas clichês que envolvem a figura do galo, 



Um outra referência desse mesmo tema é o livro infantil de autoria também de Clarice Lispector; A vida íntima de Laura, publicado em 1974. 


Além do curta metragem de autoria de Quico Meirelles, clique aqui para ver o vídeo completo: A galinha que burlou o sistema