segunda-feira, 11 de maio de 2015

Tempo de ouvir

"Vou aprender a ler para ensinar meus camaradas"
Mário de Andrade

Todo leitor carrega consigo uma responsabilidade social. O indivíduo que lê livros de valor literário, dentro da comunidade, grupo ao qual pertence, se favorece ou sofre o estigma de destacar-se dos demais pela capacidade e exercício de conseguir conviver com a solidão de ler. A solidão de estar disposto às palavras do outro e, neste contato, refletir e experimentar as coisas do mundo, conceitos, ideias, sem necessariamente ceder, pôr em risco, entregar o corpo a determinadas realidades. 
Vejamos que impressões ficamos dos dois textos lidos no último encontro, os capítulos finais da obra Quincas Borba (1892), de Machado de Assis; e o capítulo Baleia, da obra Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos. Não vamos aqui nos deter em questões contextuais a respeito do movimento estético pertencente a cada um desses autores, isso já foi colocado em nosso encontro. O que interessa é de que modo essa leitura nos afetou. Afinal, ler é deixar afetar-se; se não há entrega, não há o encontro que gera no leitor a apreensão do efeito estético. Exagero? Sim, precisamos exagerar para que a arte nos absorva e nos absolva; retirando-nos da anestesia cotidiana e oferecendo-nos um olhar novo sobre a camada superficial da realidade. Estamos, então, em Barbacena, século XIX, acompanhamos um homem e seu cachorro num périplo que o leva ao fim de sua vida (ambas as vidas, do cachorro e do homem se acabam ao fim do romance machadiano). Ao cair da tarde, faz frio e chove. O homem aos poucos vai colhendo reminiscências da vida que viveu ali (ler todo o romance ajuda); a sensação física de estar exposto à chuva e faminto é apresentada pelo narrador de maneira  precisa - claro, é Machado de Assis, não contestamos o caráter artístico dessa narrativa, pois ele já se mostrou eficiente. Em outro momento, passamos para outra paisagem. Já não chove (quisera chovesse), nem faz frio. O sertão de G. Ramos em Vidas secas impregna-se nas alma das personagens. De todas, sem medida para mais ou para menos entre homens e animais. Trata-se de uma hora fatal. A maior de todas as horas, todos sabem; todos sofrem. Mesmo sem que seja necessário um longo discursos sobre esta condição. Fabiano, um dos protagonistas que integram a família (sim, ler todo o romance ajuda) chega à conclusão, intui, pressente, conclui que é preciso matar a cachorra Baleia. O desenrolar desse ato se projeta em nossos olhos de leitor. Estamos com o narrador; num primeiro momento, este colado à personagem de Fabiano - para logo depois abandonar todos e concentrar sua percepção em Baleia. Algumas palavras podem nos ferir os ouvidos, alguns leitores não familiarizados com a fala que emerge do texto, faca só lâmina, pela brutalidade que o meio lança sobre os homens e bichos que ali vivem - o Sertão, podem querer abandonar o romance e não voltar jamais a este lugar que o narrador apresenta. É preciso olhar, é preciso ouvir, afiar os sentidos e perceber que o drama - mesmo que atinja o bicho - é humano, e assim, diz respeito a todos nós. Ouvimos a voz desses narradores que, ao nos noticiar as últimas horas dessas personagens nos dá um testemunho vivo; melhor, verossímil, pois mesmo tratando-se de obra ficcional, representa a vida em sua casca quebradiça e frágil. 
Se o escritor, ao criar essas personagens, valeu-se de determinadas regras, conceitos, paradigmas próprios da estética literária na qual ele está inserido (o Realismo, no caso do Machado; o modernismo de 30, no caso de Graciliano Ramos), isso pouco importa para que o leitor vivencie em sua leitura o efeito estético. Desde que ele já esteja familiarizado à dicção machadiana ou ao falar árido de Graciliano, o esforço físico de ler - correr os olhos letra a letra, palavra a palavra, parágrafos e capítulos - já não se coloca como um obstáculo. Mas digamos que você seja um leitor que ainda não está "treinado" a ouvir/ler a narrativa desses autores. O salto (apreensão do efeito estético) será mais difícil (esse primeiro entrave é lento e demanda um treino, que somente com algum tempo de leitura de obras desses autores, ou de autores que se afinem com a estética realista, é que será menos sofrível, dolorido, difícil de vencer). A "caminhada" física do ato de ler poderia, claro, ser menos trágica se estivéssemos lidando com um leitor treinado desde cedo a reconhecer os tipos de percurso que ele irá enfrentar e, diante do desafio, se sentisse confiante, disposto e satisfeito com esse enfrentamento. Uma outra possibilidade é de tratar-se de alguém já adulto que, tendo interrompido por um tempo o exercício da leitura, voltasse a pegar em livro. É o mesmo que um exercício físico, sim. Alguém que, em algum momento de sua vida já tenha praticado esporte, quando volta a fazê-lo, o corpo acorda aquela experiência antiga e vai respondendo com mais vigor à medida que o exercício se torna mais exigente. Então, vencer esse esforço físico do ler é que representa um primeiro passo no que chamamos antes de "caminhada". 
Se antes dissemos que leitura é entrega, essa entrega deve ser dosada pelo prazer da caminhada. Vamos começar com um treino leve, até que o corpo (os olhos, a atenção, a escuta imaginativa) se familiarize com o percurso. Ler um capítulo, parar, refletir, observar o modo como esse autor constrói a estrutura narrativa pela qual passeamos - são bons artifícios de que dispomos para ultrapassar as dificuldades do ato de ler. E em vez de já tentar ler outros livros do autor, poderíamos também experimentar reler determinado trecho, para constatar que a coisa vai ficando mais "reconhecível". Aos poucos, ao bater os olhos na página, você já está identificando a voz (dicção) narrativa de determinado autor. Afinar o ouvido, usufruir tranquilamente da melodia, do ritmo, do andamento que se constrói à medida que lemos um texto é o mais importante para que, de repente, sem nos darmos conta, possamos ler sem perceber que estamos lendo: eis o salto. Simplesmente sentindo a narrativa e experimentando, pela grande tela que se abre em nossa imaginação, a mesma sensibilidade vivenciada pelas personagens. Estamos diante do outro no momento da leitura; até que distraidamente, somos o outro. Em sendo o outro nessa experiência de ler, sentimo-nos capazes de compreender sua dor, pois mais que ela se diferencie da realidade (social, cultural, econômica) a qual pertencemos.