segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Um boi vê os homens

Tão delicados (mais que um arbusto) e correm e correm de um para o outro lado, sempre esquecidos de alguma coisa. Certamente falta-lhes não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres e graves, por vezes.
Ah, espantosamente graves, até sinistros.
Coitados, dir-se-ia que não escutam nem o canto do ar nem os segredos do feno,
como também parecem não enxergar o que é visível
e comum a cada um de nós, no espaço.
E ficam tristes e no rasto da tristeza chegam à crueldade.
Toda a expressão deles mora nos olhos -
e perde-se a um simples baixar de cílios, a uma sombra.
Nada nos pêlos, nos extremos de inconcebível fragilidade, e como neles há pouca montanha, e que secura e que reentrâncias e que impossibilidade de se organizarem em formas calmas, permanentes e necessárias.
Têm, talvez, certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazem
perdoar a agitação incômoda e o translúcido vazio interior que os torna tão pobres e carecidos de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme
(que sabemos nós), sons que se despedaçam e tombam no campo
como pedras aflitas e queimam a erva e a água,
e difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade.

ANDRADE, Carlos Drummond de.Um boi vê os homens. In; Claro Enigma. São Paulo. Companhia das Letras, 2012.


Drummond, em 1951, publica no livro Claro Enigma, o poema "Um boi vê os homens". Não será obviamente a mesma visão que um boi, hoje, veria os homens. Os bois, hoje, não teriam o mesmo tempo de reflexão para enxergarem os homens com tamanha calma e concentração. Mas vamos ver como era esse olhar do boi que vê os homens em 1951. E também, óbvio, o poeta personifica o sentimento que um boi teria em relação aos homens. Vejamos:

Tão delicados (mais que um arbusto) e correm e correm de um para o outro lado, sempre esquecidos de alguma coisa. Certamente falta-lhes não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres e graves, por vezes.

Ah, espantosamente graves, até sinistros.


A delicadeza que o boi vê nos homens não está relacionada a uma característica comportamental e sim física. São os homens delicados, frágeis, desprovidos de estrutura física que lhe atribua certa força natural. Sua pele, sua carapaça, são delicadas como arbustos, rasteiros, que crescem e se amontoam. Nessa delicadeza, exposta à flor da pele, resta uma inquietação, alguma coisa que lhes impede a calma, a concentração a tranquilidade. Os homens correm, de um lado para outro, como se esquecidos de algo que lhe falta. Ausência nunca preenchida condicionando esse incensante correr. Se tanto correm, pensa o boi, decerto falta-lhes algo que, se estivesse com ele, não geraria essa inquietação. Por outro lado, esse estigma confere-lhe alguma nobreza - uma espécie de piedade por este ser frágil e inquieto é despertada no olhar do boi. Pobre homem, tão grave o seu semblante. Esse olhar grave por vezes se escurece, torna-se sinistro, como um espectro que o acompanha, talvez a impossibilidade de encontrar a essência e aquietar-se, enfim. 

Coitados, dir-se-ia que não escutam nem o canto do ar nem os segredos do feno,
como também parecem não enxergar o que é visível
e comum a cada um de nós, no espaço.

Ao observar o homem, o boi sente por ele uma piedade. Pobre homem, não sabe o quanto seria simples se ele somente parasse para escutar o canto do ar, os segredos do feno. As coisas que estão disponíveis a ele. As coisas simples e naturais, o vento, o alimento. Isso seria suficiente para que a realidade fosse possível, visível, palpável e entre os seres houvesse uma harmonia, uma vez que os seres vivos, para viver, basta-lhes somente o essencial. O que ultrapassar isso, deturpa a visibilidade do mundo. Impede que a vista enxergue o que é visível, e a partir de então, os delírios, as visões, as inquietações que empurram o homem a incansável, inquieta e equivocada busca. O que está no espaço deixa de fazer sentido e o homem se perde. 


E ficam tristes e no rasto da tristeza chegam à crueldade.

Cansa toda essa busca. Cansa toda a correria. Não estando o homem satisfeito com o seu existir, sente-se triste. A tristeza contamina sua alma. Mais uma vez, talvez tentando compreender de onde nasce a tristeza, e sem enxergar a realidade, podem se tornar cruéis. A raiz da crueldade, para o boi que vê os homens, é somente um sintoma da tristeza gerada no homem a partir da ignorância de sua condição, sua situação, por não compreender, por não aquietar-se vem o comportamento violento. O rastro da tristeza, a extensão desse sentimento avassalador para esse ser frágil que é o homem, resulta em sua capacidade de agir violentamente. O mito de Caim, quando este se sente enciumado por Deus não se afeiçoar de suas oferendas, sente-se triste, não enxerga o visível, pensa ser Abel o motivo de sua tristeza. Tenta eliminar Abel de seu caminho. Atinge-o violentamente. Mata-o. E o sangue de Abel clama por justiça. Então, Caim, este homem que talvez esteja próximo do homem visto pelo boi no poema de Drummond, fica marcado. Um estigma o acompanha.  


Toda a expressão deles mora nos olhos -
e perde-se a um simples baixar de cílios, a uma sombra.


Nos olhos dos homens está a sua verdade. A expressão da verdade do homem é expressa pela luz emitida nesse olhar. Se o olhar for luminoso, todo o corpo irradia luz, se o olhar for feito de trevas, o corpo se contaminará dessa escuridão. A um simples baixar dos olhos, o que era luminoso pode se converter em sombra. Por que não há essa constância de luz? O baixar os olhos pode significar tristeza. Ausência de sentido na existência e, então, o rosto se volta para o chão. Baixam-se os cílios com a tristeza, a luz cede lugar à sombra e a partir de então as consequências dessa tristeza podem vir à tona, em forma de crueldade. Crueldade contra ele, crueldade praticada por ele.

Nada nos pêlos, nos extremos de inconcebível fragilidade, e como neles há pouca montanha, e que secura e que reentrâncias e que impossibilidade de se organizarem em formas calmas, permanentes e necessárias.



O homem, diluído na multidão, entre a manada, a massa, por mais que tenha uma tendência a seguir esse ritmo, não se harmoniza. A massa não apresenta uma expressividade calma, permanente e necessária. Aqui, o poeta talvez possa estava falando das diversas tentativas em conformar-se em modelos criados pelo próprio homem, esses modelos se esgotam, não permanecem - e talvez nem mesmo teriam sido necessários. Percebemos que a publicação do poema se dá no pós-guerra. O esfacelamento dos ideais humanos, a perplexidade, a ausência de perspectivas viáveis, a ausência de esperança. Temos então uma constatação de que a marcha é estéril. 



Têm, talvez, certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazem
perdoar a agitação incômoda e o translúcido vazio interior que os torna tão pobres e carecidos de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme
(que sabemos nós), sons que se despedaçam e tombam no campo
como pedras aflitas e queimam a erva e a água,
e difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade.





A melancolia que domina o espírito humano é que poderia impulsionar a criação de uma obra, algo que seja gracioso, que possa redimir o homem dessa agitação que o persegue, o vazio interior e a necessidade de preencher esse vazio de forma incessante. Os sons absurdos, agônicos transbordam, vão parar no espaço aberto, na paisagem natural do campo, "como pedras aflitas" gerando devastação - o desejo, amor, ciúme que habitam a mente resultam em tragicidade, esfacelando até aqueles seres que não provocaram nenhum mal ao homem. A destruição da paisagem (a erva e água) que poderiam apaziguar o homem desconstrói, desequilibra o espaço harmonioso da natureza. E afeta todos os seres. Nisso, o boi constata, depois de observar os homens e seu comportamento, torna-se "difícil, despois disso, ruminarmos nossa verdade." 


Qual então seria a resposta do homem a essa constatação? Existiria essa resposta? 


Vale a pena ver o que a escritora e pesquisadora Maria Esther Maciel diz a respeito do poema.

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