quarta-feira, 22 de abril de 2015

A medida de cada leitor

Mediação: algumas considerações


Saber ler é o mesmo que ser um leitor? Todos que estamos frequentando o laboratório de leitura sabemos ler, claro. Somos/fomos alfabetizados, mas tornar-se um leitor, sem ter que pensar nisso, é algo que vem com o tempo – com as leituras, óbvio. Aliás, o que vou falar aqui parecerá óbvio, mas tem a ver com determinadas questões que surgiram das nossas conversas. Pois bem, o que diferencia tanto a arte literária das demais? Para ouvirmos uma música, por exemplo, basta-nos ligar o rádio e continuar o que estamos fazendo que a música nos chega e interagimos com ela sem muito esforço. Ouvimos a mesma música várias vezes e isso não nos incomoda, pelo contrário, quando toca no rádio aquela música de que gostamos, a nossa resposta é imediata. Com o livro é diferente. Nós lemos muitos livros, mas relemos poucos deles. Especialmente as narrativas. Reler um romance é algo mais incomum do que, por exemplo, reler um poema. Podemos pensar que os poemas têm mais a ver com a música. Talvez devêssemos transferir para a prática de ler o nosso modo de usufruir essas outras artes – com leveza, sem obrigação. Sem ver nisso algo que nos afaste da vida, mas que esteja incluído naturalmente em nossas vidas. 

O livro
“Uma grande biblioteca nem sempre pressupõe um grande leitor.”
O livro existe no mundo, está nas livrarias, nas bibliotecas públicas e particulares. Vivemos, no Brasil, uma realidade um tanto nova em relação ao livro: ele está à disposição da maioria de nós com mais facilidade do que esteve para os nossos pais. Estou falando do livro como objeto material. A coisa livro está por aí. Mas mesmo assim ainda guarda em si algo que nos distancia dele. Portar um livro em público conota um certo valor simbólico à pessoa; uma espécie de responsabilidade. Você deve quase que prestar satisfação para o mundo a respeito daquele livro que está lendo, meio que explicar o que você está fazendo com aquele determinado objeto, o que ele significa para você. Levar um livro para casa pela primeira vez também significa algo, uma espécie de seriedade, digamos assim. Talvez devêssemos fazer esses estigmas caírem por terra, acabarem de uma vez. Naturalizar a presença de livros em nossas vidas, assim como temos em casa televisão, rádio; assim como usamos celulares para nos comunicar, devêssemos também destituir o livro dessa importância que, em vez de ajudar a aproximar leitores, acaba por afastá-los. Ninguém quer se comprometer tanto com uma coisa que exige de nós tanta explicação. Um livro pode afastar os amigos de nós – porque talvez eles pensem que estamos entrando por um caminho sem volta quando começamos com essa coisa de ler. Gastar dinheiro com livro, pode ser algo assustador para algumas pessoas.
Então, em primeiro lugar, temos que exercitar de uma maneira natural essa aproximação com o livro. Uma criança que cresce com livros a sua volta não sente o impacto dessa presença pois já naturalizou o livro entre os objetos de sua convivência, os brinquedos, o videogame, a bicicleta, convivem em sua vida junto com os livros. Isso significa que o seu tempo de ler está garantido entre as atividades que lhe dão prazer, que excitam sua imaginação.
Em nossa prática de mediadores de leitura, a primeira questão que surge é: Qual o lugar que o livro ocupa em minha vida? Essa presença do livro é incômoda para mim? Meu relacionamento com o objeto livro se constrói de uma maneira tranquila ou obsessiva? Preciso lembrar que há pessoas que têm com o livro uma relação desmesurada, adquire vários volumes que permanecem fechados em suas bibliotecas sem que ninguém os abra – simplesmente como um objeto inerte que não produz nenhum movimento naquela vida ou em outras. A biblioteca para ser mostrada aos que visitam a casa – como se simplesmente ter o livro imprima naquele sujeito uma condição de superioridade diante do outro que não possui tantos livros assim. Uma disputa de conhecimento. Como mediadores, para o bem dos leitores que pretendemos formar, temos que parar de nos deslumbrar com alguns clichês do universo dos livros que remetem para esse lugar do “Eu sou mais leitor que você”. A nossa relação com os livros pretende democratizar, socializar, multiplicar leituras; então, lermos muito, significa que temos mais arsenal para encontrar, entre nossas leituras, aquele determinado livro que permita iniciar diferentes leitores nesse universo da leitura. Se ficarmos na competição, a relação será um pouco egoísta em vez de solidária. Um comportamento egoísta institucionaliza mais ainda o livro como algo que só pode ser usufruindo por alguns “escolhidos”. Temos também que derrubar esses mitos. Possuir uma grande biblioteca nem sempre significa ser um grande leitor.  
O livro não existe para ficar parado. O livro existe para o leitor. Mediar leitura é permitir ao livro que ele encontre o leitor e permitir ao leitor que ele encontre o livro. Aquele específico livro precisa encontrar aquele específico leitor. Como duas presenças que não se conhecem, nunca estiveram juntas, mas que precisam se conhecer, se encontrar, pôr em movimento suas substâncias internas. Permitir que elas entrem em confluência e se transformem. Assim como Heráclito diz que um homem não passa duas vezes pelo mesmo rio, um livro nunca é o mesmo quando em presença de um leitor – mesmo que seja o mesmo leitor (em momentos distintos da vida, a releitura de um livro vai proporcionar sensações e reflexões diferentes). Então vamos ficar com essa ideia como mediadores – alguns de vocês obviamente já se consideram leitores, já têm suas bibliotecas particulares, não pensam mais em trazer o livro para vida de vocês pois isso já é um fato. Outros ainda não naturalizaram o livro em suas vidas. A presença pode ser que ainda seja um pouco incômoda. O que é preciso pensar, nesse primeiro momento, é como que o livro deixa de se tornar um mero objeto e se torna algo simbólico cuja presença em sua vida tem uma relevância, um lugar.
Ainda que seja um único livro (ou alguns exemplares), vamos pensar como que ele veio parar em nossas vidas, como que foi que se deu essa apresentação. Não deve ter sido fácil. Provavelmente você deve ter tido um mediador, alguém que pôs esse livro em suas mãos com uma certa afetividade, um gesto que trazia em si sentimentos que lhe proporcionavam boas sensações; permitindo que aquele objeto simples, rudimentar, frágil, acabasse ganhando um significado maior. Dar um livro para alguém é uma grande responsabilidade. Se ao comprarmos calçados ou roupas precisamos saber o número/medida que a pessoa que vai usá-los calça/veste; entregar um livro para alguém também exige o conhecimento de uma medida. Antes, o mediador deve conhecer bem a pessoa para que pense qual livro lhe cai bem. Para cada leitor, uma medida. 


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