Mediação: algumas considerações
Saber ler é o mesmo que ser um
leitor? Todos que estamos frequentando o laboratório de leitura sabemos ler,
claro. Somos/fomos alfabetizados, mas tornar-se um leitor, sem ter que pensar
nisso, é algo que vem com o tempo – com as leituras, óbvio. Aliás, o que vou
falar aqui parecerá óbvio, mas tem a ver com determinadas questões que surgiram
das nossas conversas. Pois bem, o que diferencia tanto a arte literária das
demais? Para ouvirmos uma música, por exemplo, basta-nos ligar o rádio e
continuar o que estamos fazendo que a música nos chega e interagimos com ela
sem muito esforço. Ouvimos a mesma música várias vezes e isso não nos incomoda,
pelo contrário, quando toca no rádio aquela música de que gostamos, a nossa
resposta é imediata. Com o livro é diferente. Nós lemos muitos livros, mas
relemos poucos deles. Especialmente as narrativas. Reler um romance é algo mais
incomum do que, por exemplo, reler um poema. Podemos pensar que os poemas têm
mais a ver com a música. Talvez devêssemos transferir para a prática de ler o
nosso modo de usufruir essas outras artes – com leveza, sem obrigação. Sem ver
nisso algo que nos afaste da vida, mas que esteja incluído naturalmente em nossas
vidas.
O livro
“Uma grande biblioteca
nem sempre pressupõe um grande leitor.”
O livro existe no mundo, está nas
livrarias, nas bibliotecas públicas e particulares. Vivemos, no Brasil, uma realidade
um tanto nova em relação ao livro: ele está à disposição da maioria de nós com
mais facilidade do que esteve para os nossos pais. Estou falando do livro como
objeto material. A coisa livro está por aí. Mas mesmo assim ainda guarda em si
algo que nos distancia dele. Portar um livro em público conota um certo valor
simbólico à pessoa; uma espécie de responsabilidade. Você deve quase que
prestar satisfação para o mundo a respeito daquele livro que está lendo, meio
que explicar o que você está fazendo com aquele determinado objeto, o que ele
significa para você. Levar um livro para casa pela primeira vez também
significa algo, uma espécie de seriedade, digamos assim. Talvez devêssemos
fazer esses estigmas caírem por terra, acabarem de uma vez. Naturalizar a
presença de livros em nossas vidas, assim como temos em casa televisão, rádio;
assim como usamos celulares para nos comunicar, devêssemos também destituir o
livro dessa importância que, em vez de ajudar a aproximar leitores, acaba por
afastá-los. Ninguém quer se comprometer tanto com uma coisa que exige de nós
tanta explicação. Um livro pode afastar os amigos de nós – porque talvez eles
pensem que estamos entrando por um caminho sem volta quando começamos com essa
coisa de ler. Gastar dinheiro com livro, pode ser algo assustador para algumas
pessoas.
Então, em primeiro lugar, temos
que exercitar de uma maneira natural essa aproximação com o livro. Uma criança
que cresce com livros a sua volta não sente o impacto dessa presença pois já
naturalizou o livro entre os objetos de sua convivência, os brinquedos, o
videogame, a bicicleta, convivem em sua vida junto com os livros. Isso significa
que o seu tempo de ler está garantido entre as atividades que lhe dão prazer,
que excitam sua imaginação.
Em nossa prática de mediadores de
leitura, a primeira questão que surge é: Qual
o lugar que o livro ocupa em minha vida? Essa presença do livro é incômoda
para mim? Meu relacionamento com o objeto livro se constrói de uma maneira tranquila
ou obsessiva? Preciso lembrar que há pessoas que têm com o livro uma relação
desmesurada, adquire vários volumes que permanecem fechados em suas bibliotecas
sem que ninguém os abra – simplesmente como um objeto inerte que não produz
nenhum movimento naquela vida ou em outras. A biblioteca para ser mostrada aos
que visitam a casa – como se simplesmente ter o livro imprima naquele sujeito
uma condição de superioridade diante do outro que não possui tantos livros
assim. Uma disputa de conhecimento. Como mediadores, para o bem dos leitores
que pretendemos formar, temos que parar de nos deslumbrar com alguns clichês do
universo dos livros que remetem para esse lugar do “Eu sou mais leitor que você”.
A nossa relação com os livros pretende democratizar, socializar, multiplicar
leituras; então, lermos muito, significa que temos mais arsenal para encontrar,
entre nossas leituras, aquele determinado livro que permita iniciar diferentes
leitores nesse universo da leitura. Se ficarmos na competição, a relação será
um pouco egoísta em vez de solidária. Um comportamento egoísta institucionaliza
mais ainda o livro como algo que só pode ser usufruindo por alguns “escolhidos”.
Temos também que derrubar esses mitos. Possuir uma grande biblioteca nem
sempre significa ser um grande leitor.
O livro não existe para ficar
parado. O livro existe para o leitor. Mediar leitura é permitir ao livro que
ele encontre o leitor e permitir ao leitor que ele encontre o livro. Aquele
específico livro precisa encontrar aquele específico leitor. Como duas
presenças que não se conhecem, nunca estiveram juntas, mas que precisam se
conhecer, se encontrar, pôr em movimento suas substâncias internas. Permitir
que elas entrem em confluência e se transformem. Assim como Heráclito diz que
um homem não passa duas vezes pelo mesmo rio, um livro nunca é o mesmo quando
em presença de um leitor – mesmo que seja o mesmo leitor (em momentos distintos
da vida, a releitura de um livro vai proporcionar sensações e reflexões
diferentes). Então vamos ficar com essa ideia como mediadores – alguns de vocês
obviamente já se consideram leitores, já têm suas bibliotecas particulares, não
pensam mais em trazer o livro para vida de vocês pois isso já é um fato. Outros
ainda não naturalizaram o livro em suas vidas. A presença pode ser que ainda
seja um pouco incômoda. O que é preciso pensar, nesse primeiro momento, é como
que o livro deixa de se tornar um mero objeto e se torna algo simbólico cuja
presença em sua vida tem uma relevância, um lugar.
Ainda que seja um único livro (ou
alguns exemplares), vamos pensar como que ele veio parar em nossas vidas, como
que foi que se deu essa apresentação. Não deve ter sido fácil. Provavelmente você
deve ter tido um mediador, alguém que pôs esse livro em suas mãos com uma certa
afetividade, um gesto que trazia em si sentimentos que lhe proporcionavam boas
sensações; permitindo que aquele objeto simples, rudimentar, frágil, acabasse
ganhando um significado maior. Dar um livro para alguém é uma grande
responsabilidade. Se ao comprarmos calçados ou roupas precisamos saber o número/medida que a
pessoa que vai usá-los calça/veste; entregar um livro para alguém também exige o conhecimento de uma
medida. Antes, o mediador deve conhecer bem a pessoa para que pense qual livro lhe cai bem. Para cada leitor, uma medida.
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